A Amizade de Cheikh Anta Diop e John Henrik Clarke

No seu texto “O Legado Histórico de Cheikh Anta Diop: Suas contribuições para uma nova concepção de História Africana.”, John Henrik Clarke relata alguns dos seus encontros com Cheikh Anta Diop, o que aprendeu sobre a África e sua história, assim como o sentimento panafricano. Aqui nesse texto eu vou tratar de algumas dessas considerações de Clarke e o que temos a aprender com a vida, a obra e a visão de Cheikh Anta Diop.

Dessalín Òkòtó
9 min readApr 22, 2024
Professor John Henrik Clarke

John Henrik Clarke era amigo, leitor e editor africano-americano do Cheikh Anta Diop. Em 1989 ele escreveu um texto dos mais bonitos para o seu já falecido amigo. Nele, Clarke afirma a importância de Diop para a intelectualidade, política e cultura africana.

Veja nessa introdução do artigo algumas considerações que ajudam a gente a repensar o lugar de Diop na inteligência africana contemporânea.

Cheikh Anta Diop foi considerado um dos maiores estudiosos que surgiram no mundo africano no século XX. Os anos de sua vida (1923-1986) foram anos de transições e mudanças para o povo africano e todo o mundo. Eu sou afortunado o bastante para dizer que conheço Cheikh Anta Diop como amigo, colega e mestre. Quando vivo, ele foi o maior pensador africano. Ele é reconhecido como o maior de todos os pesquisadores africanos. Utilizando as disciplinas da linguística, antropologia cultural e física, história e os conhecimentos de química e física que sua pesquisa demandava, ele forjou novos rumos teóricos e revelou novas evidências na busca para descobrir as origens antigas e os princípios que unem a civilização clássica africana.

Reparem que o Clarke pontua que Diop foi considerado "um dos maiores" pelos outros, mas ele mesmo cata alçar Diop como "o maior de todos" logo em seguida. O que torna Diop não apenas um dos mais brabos, mas o brabo dos brabos da inteligência africana do século passado?

Em primeiro lugar, por ter provado que a humanidade tem sua origem na África e de que o Egito Antigo é uma civilização geográfica e culturalmente africana.

Pense, nas décadas de 1940 adiante, a África ainda estava fatiada entre os impérios coloniais europeus e toda forma de representação racista era feita do continente. Além disso, teses como o Egito ser uma civilização não-africana e de que foi em nossa terra que a humanidade surgiu atendia a essa agenda imperialista. Antes e acima de Grécia e Roma, o Egito Antigo é o berço e referência de civilização para a Europa. Tanto que todas as civilizações que disputaram hegemonia, tinham que dominar o Egito e seu legado. Quando Cheikh Anta Diop, além de outras inteligências africanas, se reapropriam do Egito Antigo e restituem a origem da humanidade no nosso território civilizatório, ele abre uma avenida de possibilidades para a descolonização cultural do continente africano e da diáspora. Não ao acaso, até hoje ele é escanteado nos meios acadêmicos ocidentalizados e os mitos que ele derrubou ainda são objetos de (suposto) debate.

Se hoje não tratamos mais da africanidade do Egito Antigo, mas de descortinar as ligações íntimas entre as civilizações nilóticas antigas e a África tribal e imperial, é graças ao arrojo e engenho histórico e científico de Cheikh Anta Diop.

Cheikh Anta Diop

Em seguida, Clarke continua:

A visão do Dr. Diop do Egito como uma civilização negra lhe rendeu a inimizade dos historiadores eurocêntricos. No entanto, suas perspectivas foram fundamentados em estudos nas ciências exatas que ele usou para demonstrar o conteúdo de melanina de restos mumificados.

O Dr. Diop não foi apenas um teórico inovador, mas, como pragmata, publicou obras que delineavam sugestões programáticas para a unificação política e econômica da África. De certa forma, ele foi além do Panafricanismo. Foi um erudito militante, dedicado à ciência no interesse de seu povo. Ele via a África e seu povo como a esperança da humanidade.

Quando o professor Clarke aponta o alcance das contribuições para o projeto panafricanista que Diop fez, ele não se refere aos seus feitos, mas aos recursos teóricos e científicos que Diop ofertou para a construção do nacionalismo negro no mundo. Vamos a dois deles.

Um primeiro foi nada menos do que estabelecer o o vale do nilo como o berço da humanidade e da civilização para todo Continente Africano e o mundo, por extensão. E a importância disso precisa ser devidamente dimensionada.

Um dos raros consensos entre estudiosos nos quatro cantos do mundo é que Kemet e Kush deram as bases civilizatórias da humanidade. Mesmo que muita gente tente dar à Mesopotâmia a mesma antiguidade que o Egito Antigo e a Núbia, ninguém dirá que as civilizações do Rio Eufrates impactaram o parâmetro de civilização e cultura da humanidade na mesma proporção que as civilizações do Rio Nilo.

E o que isso tem a ver com panafricanismo? Quando Diop demonstra a africanidade de Kemet e de Kush, ele está posicionando a cultura africana na raiz, base e centralidade da própria civilização humana. Além disso, ao provar que essas foram culturas africanas, ao invés de semíticas, mediterrâneas ou euro-asiáticas, Diop fez valer a máxima de que a África deu ao mundo a base genética, humana e espiritual. E, por fim, devolveu aos povos negros do mundo as nossas raízes. E das maiores implicações da importância disso tudo se resume na famosa declaração de Marcus Garvey:

Um povo sem história é como uma árvore sem raízes.

- Marcus Garvey

O panafricanismo de Diop jamais foi meramente teórico, como uma parcela significativa dos militantes de gabinete. Ele teve forte atuação política por toda a vida e isso vale um texto à parte, ainda. Mas, além da atuação política, Diop ofereceu subsídios históricos e científicos para o fortalecimento do Panafricanismo e a construção de um projeto próprio de renascimento cultural para os africanos mundo afora.

O que se confirma na consideração de Clarke sobre seu último encontro com Diop.

Eu o vi pela última vez em uma conferência em Brazzaville, em março e abril de 1985. Essa conferência tratou do centésimo aniversário da Conferência de Berlim sobre a partição da África. Em seu discurso principal, ele delineou a história antiga e medieval da África e demonstrou as raízes africanas da civilização mundial. Ele era mais do que um historiador: era também um cientista do mais alto calibre. Todos os africanos, em todos os lugares estão mais próximos de entender seu destino por causa da personalidade e do trabalho de Cheikh Anta Diop.

Esta conferência, como se percebe, foi uma ocasião de reflexão pós-colonial dos africanos recém-libertos do jugo imperialista, ao mesmo tempo que um protesto contra essa mesna dominação que, oficialmente estava eliminada, mas na realidade ainda se fazia presente na roupagem do neocolonialismo.

E onde Diop mostra a forma mais bem acabada desse projeto?

Em seu livro “Black Africa: The Economic and Cultural Basis For a Federated State” (“África Negra: As Bases Econômicas e Culturais para um Estado Federado”, em livre tradução. ) ele apresentou um plano para poupar a riqueza mineral da África para as gerações africanas que viriam a nascer. Este livro ainda não é amplamente lido compreendido. Isso é lamentável porque é um de seus livros mais úteis. (…)

Esse livro do Diop ainda é dos menos contemplados nas leituras da sua obra. Mas, nele, Diop mostra um olhar aguçadíssimo sobre o jogo geopolítico naquele contexto de Guerra Fria, tendo o que torna as nações grandes também poderosas e como isso pode ser aplicado à África.

Carlos Moore

Um bom demonstrativo disso é dado em uma entrevista dada a outro patrimônio humano da nossa raça africana, o africano-cubano Carlos Moore. Em uma entrevista dada em Dakar, Diop resume seu ponto de vista sobre as direções mais significativas para se construir o nacionalismo africano.

Questão: Você discute a futura organização da África como sendo a de uma confederação de três áreas no continente que tenham relações próximas e que irão basicamente se direcionar para o desenvolvimento de um sistema político unificado. Por favor, desenvolva essa ideia.

Diop: Como você sabe, eu escrevi um livro dedicado exclusivamente a esta questão. Na minha opinião, o estágio de micro-estados, como poderia ser visto na Europa no século XIX, e como pode ser visto hoje na África, se tornou um anacronismo. Hoje, a única solução política viável para a África está em um Estado continental. Se um Estado continental não puder ser alcançado em um primeiro estágio, então deve-se, pelo menos, aspirar a uma união dos estados subsaarianos, como primeiro passo. Por quê? Pelo simples fato de que nos nossos tempos, um Estado que não consegue controlar e defender seu espaço cósmico e atmosférico, não pode ser considerado independente. Como poderiam estados compostos por 200 mil ou mesmo muitos milhões de habitantes almejar obter os meios pelos quais eles poderiam defender e controlar seu espaço cósmico? Nestes tempos, o único Estado viável é aquele que consegue encarregar-se de atividades em espaços exteriores. É por isso que no presente apenas a União Soviética, os Estados Unidos e a China podem ser considerados como estados verdadeiramente independentes. Minha ideia de uma união continental é a de uma federação flexível que não sufoque as identidades nacionais mas na qual defesa, relações exteriores e comércio exterior sejam adquiridos no bojo de um governo continental. Veja o que aconteceu recentemente em Uganda. Toda a África foi humilhada pelo lei de Israel que serviu para mostrar que a independência dos governos africanos é puramente simbólica. Ninguém pode chegar e fazer o que quiser – de fato, mesmo sequestrar o Chefe de Estado – e sair ileso nas nossas atuais nações “independentes”! Apenas interesses egoístas e pessoais estão mantendo a África longe de um estado continental. No momento tudo que temos são regimes instáveis, golpes, contragolpes e situações tipicamente sul-americanas. Não há segurança, nem para o indivíduo nem para as coletividades nacionais. O que existe hoje pode desaparecer amanhã como resultado de um golpe. Como pode a África criar qualquer instituição permanente ou avançar tecnologicamente nestas condições? Em um futuro próximo, quando víveres e recursos naturais se esgotarem da face da Terra, haverá de ser na profundeza dos mares que o homem procurará por comida e substâncias cruas. Como, você pode perguntar, um país como o Gabão habitado por 200 ou 400 mil pessoas, ou o Senegal com seus 5 milhões de habitantes, mergulhará nas profundezas do oceano com a intenção de alimentar a nação assegurando os recursos naturais necessários para promover e sustentar seu desenvolvimento material? É como pedir para um aleijado que compita nos jogos olímpicos. Não é? Apenas uma união continental pode salvar a África. No livro eu já havia mencionado, você verá que eu detalhei os meios pelos quais uma união como esta pode promover o desenvolvimento industrial, tecnológico, político e científico dos povos africanos. Há muito mais a ser dito.

Como podemos ver, qual é a proposta para a forma, princípio e propósito de um Estado Panafricanista? Destaquei em negrito para facilitar essas informações. Uma Federação Africana teria como finalidade primeira garantir os papéis fundamentais que uma estrutura Estatal de nação (nação entendido aqui como grupo que compartilha da mesma história, cultura e valores civilizatórios): provimento de terra, comércio e defesa. Terra para plantar, criar e viver; comércio para transformar as riquezas e produções em prosperidade para o povo; defesa para garantir que as riquezas estejam à salvo de invasões.

Para ter condições disso, este Estado Federativo deve ter alcance continental no solo, nos mares, nos céus e no espaço (provavelmente Diop acrescentaria o cibernético como um quinto território de soberania nacional). A soberania é a autonomia das nações. E, assim como a autonomia de alguém não se constrói sozinha, a das nações não é feita em partes. Se você tem soberania, você domina todas as áreas da nação. Do contrário, você pode ser rico ou culturalmente influente, mas incapaz de se defender da força e domínio estrangeiro.

Se aqui vemos como Diop compreendeu o que ergue civilizações e as mantém fortes para o seu povo, também entendemos como ele aplicava esse conhecimento para a realidade Africana, tendo em vista o contexto geopolítico global do seu tempo.

Não ao acaso, John Henrik Clarke foi feliz quando finaliza sua homenagem inicial de a Diop declarando o seguinte:

O destino não é generoso na distribuição de grandes homens do calibre de Cheikh Anta Diop. Nós, como povo, temos a sorte de ter encontrado seu gênio e de ter desfrutado de suas descobertas em nossa história durante sua breve vida. Cheikh Anta Diop nos deixou uma missão e um legado. Cumprir esta missão e honrar este legado é o maior monumento que podemos erguer para ele. Ele descansará em paz somente quando seu povo estiver livre da dominação estrangeira e estivermos seguros em entender nossa história e nossa missão mundial.

Para nós, fica o compromisso de dar continuidade às contribuições de grandes como o Diop, mantendo sua obra e expandindo seu legado!

Referências:

  • O Legado Histórico de Cheikh Anta Diop: Suas contribuições para uma nova concepção de História Africana.
    Autor: John Henrik Clarke
    Publicado na revista "Présence Africaine", 1989, série 149/150; p. 110-111.

Eu fiz uma tradução desse ensaio, que você lê aqui no medium, mesmo.

  • Conversações com Cheikh Anta Diop — Entrevistado por Carlos Moore.

Portal Geledés.

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Dessalín Òkòtó

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.