As Três Fases para a Glória do Império Kush

Dessalín Òkòtó
5 min readMay 22, 2024

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Antes, depois e maior que Kemet, vem Kush. O Vale do Nilo foi cenário das maiores e mais avançadas civilizações da antiguidade. Duas delas, tem uma história entrelaçada entre guerras, trocas comerciais e alianças políticas devido à sua matriz cultural comum. Aqui nesse trecho, vou apresentar os três momentos de florescimento da civilização kushita através das suas três capitais e apresentar como ela se relaciona com a história de Kemet, sua irmã do baixo-nilo.

Reprodução de uma cerimônia real kushita.

Os três períodos históricos da civilização kushita.

A história de Kush pode ser contada segundo três períodos que coincidem com suas três capitais.
1ª Kerma
2ª Napata
3ª Meróe.
Nesses três períodos da sua história, não é só a capital que muda, mas a relação de Kush com o continente africano, com as civilizações vizinhas e a sua cultura.

I. KERMA (5.000 até 3.000 a.e.c).

Sítio Arqueológico de Kerma

Na primeira fase, Kush tinha como capital Kerma, entre a primeira e segunda catarata do Rio Nilo. Nesta fase, kush desenvolveu um sistema de agricultura adaptado à realidade do Rio Nilo, se prosperando graças à sua localização geográfica entre o interior sup da África e a Eurásia. Não por acaso, Kerma despertou a atenção de outros povos até ser dominada por Kemet, no antigo império kemita.

Nesse período, a gente vê Kush e Kemet se entrelaçarem em suas culturas de tal maneira que o mesmo culto a Amun realizado em na cidade kemética de Waset (Tebas), sob influência da kushota Kerma. Quando os hicsos ocuparam Kemet, os Kushitas se livraram da ocupação kemita e subiram sua capital Nilo adentro, refloresceneo em sua segunda capital.

II. NAPATA (3.000 até 300 a.e.c)

Sítio Arqueológico de Jevel Barkal, em Napata.

Em Napata, Kush floresce como a principal encruzilhada comercial entre a África e a Eurásia. Nessa fase, ainda, se torna tão poderosa política e economicamente que funda colônias ao sul da Península Arábica e forma o poderoso exército dos medjay (arqueiros) para se defender de estrangeiros. Nesse meio tempo, Kemet assiste seu terceiro período intermediário, indo pedir socorro a Pianky, faraó kushita, para não cair nas mãos dos sumérios. Então o jogo vira e Kush passa a comandar Kemet. Nesse período, a extensão do poder de Kush alcançou não só o território de Kemet, como se expandiu até o Oriente Médio, chegando às margens do que hoje chamamos de Turquia. Kush era o reino mais poderoso do mundo!

Mas cem anos depois Assírios se organizam para invadir Kemet e são bem sucedidos, expulsando a dinastia kushita de volta para o alto Nilo. Taharqa retorna para Napata e, como transfere a capital mais ao sul ainda, mais pra dentro da África ainda. Lá, funda Meróe. Nesse período, a gente vê uma revolução cultural, política e econômica em Kush. Os deuses comuns a eles e Kemet são substituídos por deuses autóctones, a escrita medu neter (hieróglifo) é substituída pela indecifrável escrita meroíta. Kush deixa de ter sua economia baseada apenas na agricultura e comércio africano-euroasiático e passa a ser o centro de produção de jóias, artesanato e ourivesaria.

III. MERÖE (300 a.e.c até 900 d.e.c)

Meroë, terceira capital de Kush, atual Sudão.

Quando Kush abandona os deuses compartilhados com Kemet para fazer valer o culto aos neteru autóctones, como Apedemak, Sebemeker, Arensnufis e Mandulis, Kush está sinalizando, como bem formulou Akínwálé quando conversávamos sobre isso, que os deuses keméticos não servem mais. Por cultuar aqueles deuses, Kemet caiu nas mãos dos estrangeiros e não conseguiram se manter unificados. Será necessário novas divindades para se manter íntegra e longeva. Dá certo, pois os "deuses meroítas" garantem à Kush mais mil anos de existência.

Ao abandonar a escrita comum a Kemet, o medu neter, Kush também está dando um passo importante na sua autonomia e prosperidade. O que ocorria em Kemet? Estrangeiros tinham invadido os templos, as bibliotecas e aprendido a ler e escrever na escrita sagrada. Não havia mais mistérios a serem revelados mediante iniciação, basta ver o tanto que gregos roubaram e chamaram de cultura própria. Vendo isso, quando kushitas inventam uma escrita própria, a meroíta, estão fazendo questão de criarem um sistema de registro e comunicação interno e indecifrável a estrangeiros.

A decodificação da escrita de Kemet só foi possível pois encontraram a pedra de roseta. Um artefato onde havia escritos em três línguas: kemetico, grego e hebraico. A gente jamais vai traduzir a escrita meroíta pois kushitas jamais permitiram registros bilíngues até onde temos de escavações. E isso é um sinal claro de que eles não queriam ser traduzidos e, portanto, decodificados. Justamente pra não caírem na mesma desgraça que Kemet caiu.

Por fim, quando Kush transforma o artesanato e ourivesaria no carro-chefe da sua economia, é como um país hoje em dia passar a ser fonte de tecnologia digital e eletrônica. Estamos falando de um povo que deixou de ser meramente fornecedor de "commodities" e "feira livre" pra fazer do Vale do Nilo o Vale do Silício da antiguidade.

Vocês peguem os artefatos kushitas, o nível de sofisticação técnica, detalhe e delicadeza são monumentais na sua pequenez. Eu não me surpreenderia se alguma escavação descobrisse que tudo era feito mediante alguma máquina tão desenvolvida quanto as que usamos hoje em dia. Tem muita coisa que pode ter rolado na antiguidade que a gente nem sonha por ter a prepotência de se achar o último grito do desenvolvimento tecnológico da humanidade.

KUSH ALÉM DE KEMET

Kushitas carregando ouro e mirra

Com Kemet rodando de mão em mão entre os invasores, Kush se manteve independnete, próspera e longeva. A cada nova fase, a cada nova capital, mais dentro do continente, mais próxima do coração da África, mais próxima da fonte do Rio Hapi.

Esse é um dos detalhes da história de Kush e Kemet pouco comentado porque mesmo a negada que fala do assunto gosta de focar na importância de Kemet pra europeu, ao invés de botá-la em perspectiva com Kush. Kemet é um civilização colossal quando a gente a compara com gregos, mesopotâmicos, persas e romanos. Mas Kush e magnânima quando a gente observa sua história, cultura e espiritualidade nos seus vários mil anos de existência.

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Dessalín Òkòtó

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.