Ibrahim Traoré saberá ser Sankara quando Putin trair a África?

Traoré tem feito gestos anti-imperialistas e declarações pelo nacionalismo africano que têm mexido com nossos ânimos. Mas suas alianças, apoiadores e declarações de alinhamento alertam para um pouco de cautela antes da gente considerá-lo o “novo Sankara”, como muita gente tem feito aí.

Dessalín Òkòtó
8 min readAug 8, 2023
Fonte: burkina24.com

Uma galera tá emocionada com o Ibrahim Traoré por causa das declarações e ações que ele vem fazendo desde que deu um golpe e assumiu o governo de Burkina Faso. Compreensível. Somos carentes de lideranças que falem de autonomia e liberdade sem depender da tutela branca. Mas eu teria uma certa cautela nisso tudo, pois certas alianças e apoios podem ser um verdadeiro cavalo de troia para quem acredita que tudo o que reluz é ouro. Cata esses pontos sobre aí e, depois, me diga se não é para ter cautela?

1. O que vem chamando a atenção em Traoré?

Traoré assumiu o governo da junta militar de Burkina Faso diante da incapacidade do líder anterior romper com os acordos comerciais e militares com a ex-metrópole França. Esses acordos eram basicamente vender a preço de banana o urânio, que importa no fornecimento de energia francesa em um contexto de gás escasso por causa da guerra na Ucrânia. Ibrahim assumiu, e cortou o comércio de urânio com os franceses.

Outra medida foi expulsar os militares franceses da terra de Sankara a fim de evitar interferência externa indesejada nos assuntos nacionais. Agora parece que esses soldados franceses estão concentrados no Senegal em compasso de espera, provavelmente para ajudarem em alguma ação militar com aliados africanos ou, mesmo, OTAN.

Ainda nesse contexto de destituir um governo que ia contra os interesses nacionais, a junta militar liderada por Traoré está declarando guerra contra grupos terroristas islâmico-jihadista que, nos últimos dez anos, já promoveram incontáveis ataques, massacres e sequestros em massa por todo o norte e oeste africano. A situação é tão dramática que chega a ser pior que o que rola no Oriente Médio.

E, por fim, Traoré fechou com Abdourahamane Tiani, do Níger e Assimi Goita, do Mali, generais que recentemente golpearam governos cooptados pela União Europeia. Nos últimos dias, a União Econômica e Monetária do Oeste Africano (UEMOA) deu um ultimato ao Níger para que o governo anterior fosse restaurado.

A resposta veio à galope. Burkina Faso e Mali fecharam aliança com Níger e declararam que, se a UEMOA fizesse intervenção militar no Níger, haveria uma guerra entre eles. Burkina Faso, Mali e Níger participam da organização. Mas, neste momento, racharam de vez com os outros países.

Recentemente Ibrahim Traoré e Assimi Goita, aventaram formar uma federação anti-imperialista onde o Níger e, possivelmente, Chade e Sudão do Sul entrariam, também. Essa federação seria uma aliança alternativa à União Africana (UA), à UEMOA, voltada principalmente para combater o terrorismo no Sahel.

Mas, Dessalín, qual o problema no meio disso tudo?

2. Já combinou com os russos?

Encontro entre Traoré e Putin em São Petersburgo, 2023.

Eu não tenho problema com golpes de estado nem governos militares. Prefiro olhar quais os grupos em disputas, os interesses que estão em conflito, assim como o jogo de tomada e manutenção de poder. Golpe por golpe, todas as repúblicas e colônias modernas nasceram de golpes. Governos Militares por Governos Militares, nem mesmo as democracias mais consolidadas e as monarquias mais centralizadas têm pleno domínio sobre suas Forças Armadas. A estabilidade adquirida é porque os governos, sejam eles democráticos ou ditatoriais, republicanos ou monarquistas, todos eles jogam de acordo com os interesses militares. Qualquer governo que fuja a isso é golpeado. E, se olharmos para os tipos de transição que aconteceram na descolonização da África, fosse via negociação como no Congo, fosse mediante luta armada, como no Quênia, só permaneceu grupos políticos alinhados aos interesses coloniais. Então o fato de regimes aparentemente nacionalistas africanos nascerem de golpes não me diz muita coisa, não.

Isto posto, minha pulga atrás da orelha vem quando eu vejo o discurso anti-imperialista e nacionalista africano sendo usado para sustentar e justificar as ações políticas vir casada atrelada à aliança com a Rússia e o Grupo Wagner.

Recentemente, vários líderes africanos se reuniram em São Petersburgo para uma já tradicional assembleia entre nações africanas e a Rússia.

Nela, a Rússia aproveitou para mostrar que não está isolada, apesar das sanções do ocidente e, ainda, demonstrou “generosidade” ao fornecer gratuitamente cereais para nações africanas em alternativa ao fornecimento pago que a União Europeia estava fazendo. A guerra da Ucrânia está prejudicando a cadeia de alimentos mundo afora e países sem segurança alimentar estão mais vulneráveis. Então, para as nações africanas, isto foi uma grande medida!

Em resposta, Ibrahim Traoré agradeceu os cereais, mas deu aquele tapa na cara dos colegas africanos afirmando que, na próxima reunião, todos tinham a obrigação de chegar com dinheiro para comprar comida e commodities para comercializar ao invés de permanecer como mendigos perante o mundo. Na esteira desse mesmo discurso, chamou a Rússia de nação da mesma família, colocando a Segunda Guerra de 1939–45 como o elo de ligação entre os dois povos. Nela, a então União Soviética foi tão ou mais importante para conter os avanços do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) do que a aliança entre Inglaterra-EUA. O papel africano foi similar ao brasileiro, com requintes de imposição colonial: africanos foram à guerra pra ser bucha de canhão.

Discurso de Ibrahim Traoré, em São Petersburgo (2023)

Traoré foi manhoso quando jogou a Segunda Guerra como elo de ligação familiar entre Rússia e África. Principalmente quando disse que ambas foram retiradas do protagonismo da resistência ao nazi-fascismo e tiveram seu papel apagado pela história oficial. Em uma tacada, apelou à narrativa oficial russa e seus afetos mais ressentidos em relação ao Ocidente.

É bom lembrar que, quando Putin estava preparando invasão à Ucrânia, ele usou alguns desses argumentos históricos. Destacou a origem da Rússia em Kiev para justificar o elo familiar dos dois países. Falou do papel da União Soviética contra o nazismo para justificar sua “desnazificação” da Ucrânia. Lembrou dos acordos de Stálin para reivindicar o direito russo sobre territórios ucranianos e, por fim, apelou ao tratado de Minsky para defender a não-entrada da Ucrânia na OTAN ou na União Europeia.

Quando Traoré joga para a segunda guerra o elo familiar que liga Rússia e África, ele joga com a narrativa hegemônica que sustenta a invasão russa. Quando Traoré declara a injustiça do papel de ambos os povos na luta contra o nazi-fascismo, ele apela ao ressentimento russo de ser escanteado na memória histórica do ocidente.

O problema é que a União Soviética lutou na Segunda Guerra como potência política, econômica e militar. A África lutou como colônia. Outro detalhe é que todo o período de descolonização do continente africano (de 1960 a 1980) foi marcado por golpes, guerras e genocídios estimulados e, algumas vezes, provocados tanto pelo lado americano quanto pelo lado soviético. Então, historicamente, nem a União Soviética, menos ainda a Rússia tem ações efetivas que tenham promovido, apoiado ou ajudado a independência, autonomia e desenvolvimento do continente africano.

Além disso, assim que os últimos golpes foram realizados no oeste africano, Prigoyn (ex-líder do Grupo Wagner e aquele que marchou a pouca distância de Moscou para derrubar os generais de Putin, se exilou em Belarus e agora está em São Petersburgo) já declarou apoio aos novos governos na luta contra o terrorismo. Esse generoso apoio de Putin e Prigoyn a Traoré, Goita e Tiani não tem vistas o interesse africano, mas o seu próprio interesse de formar aliança-prévia no “sul global” caso a Terceira Guerra Mundial estoure ainda nesta década.

3. Traoré estaria fazendo uma Manobra L’Overture?

Do lado africano, o que eu fico mais curioso, e por isso minha cautela, são as razões para esse alinhamento quase automático de Burkina-Faso à Rússia e ao Grupo Wagner.

Um primeiro motivo seria por causa da luta anti-terrorista e anti-imperialista. Acontece que as armas dos grupos jihadistas são americanas, francesas e russas. Outra, que o Grupo Wagner tem sido um dos principais elementos de instabilidade na África, haja vista as guerras civis do Sudão e os ensaios de genocídio que estão acontecendo no Sudão do Sul e Chade. Sendo assim, eles mesmos são uma forma de grupo terrorista em solo africano. Por fim, Prigoyn não quer a liberdade africana, mas retomar o poder de influência na Rússia.

Outro ponto curioso que me faz ficar cauteloso em exaltar o Ibrahim Traoré logo de imediato, apesar de apreciar bastante suas medidas até agora, é que os interesses russos são bem claros: formar aliança no sul-global e criar alternativas às sanções ocidentais, assim como aumentar sua influência nas matérias-primas do continente africano para ter mais uma arma de retaliação às sanções do Ocidente.

O que uniria a África e a Rússia seria muito menos a luta contra o nazismo na Segunda Guerra e, mais, o ressentimento de não serem tratados como um igual perante os branquin do shopping ocidental. Russos são vistos como europeus de segunda classe. São identificados como eslavos, palavra que vai dar origem ao termo “escravo”. Africanos são a imagem da escravidão no imaginário ocidental. Tanto um quanto o outro estão barrados no baile.

As únicas duas coisas que me explicam, por enquanto, a razão desse alinhamento são os fatores ideológico e bélico. Provavelmente a formação política em um partido socialista faz Traoré enxergar na Rússia o tesouro perdido da União Soviética, assim como o fato de ser um brutamontes cheio de bombas atômicas no bolso um meio de proteção à invasões ou ocupações militares da OTAN ou UEMOA. Desde 2020 existem acordos militares entre nações africanas e a Rússia.

Mesmo assim, se for este o caso, talvez Traoré esteja aprendendo com a tragédia de Gadaffi, que não se alinhou nem à Rússia nem à China e se viu desamparado da União Africana quando a OTAN o caçou e arrasou a Líbia na esteira da dita “Primavera Árabe”. Para evitar isso, talvez Traoré busque alianças militares estratégicas para não ser varrido do mapa com a mesma facilidade que Gadaffi e, mais dramaticamente, o próprio Thomas Sankara.

Então, apesar das declarações e medidas anti-imperialistas, a aliança de Ibrahim Traoré com a Rússia no contexto geopolítico global atual é algo que me faz ter certa cautela. Eu espero, no fundo eu torço, que essa medida dele seja que nem aManobra de L’Overture no contexto da Revolução do Haiti.

Uma das ações mais controversas, mas que se mostrou muito eficaz no contexto da revolução haitiana, foi Toussaint L’Overture catar seu exército revolucionário para lutar pela coroa espanhola em um momento e depois pelos ingleses, sempre contra os franceses pelo domínio da Ilha de Santo Domingo. Assim que ele viu que nem os espanhóis, nem os franceses dariam alforria aos negros após a vitória sobre os franceses e recebeu dos enviados de Napoleão a proposta de abolição da escravatura, L’Overture rompeu com os ingleses e espanhóis, lutou pelos franceses contra aqueles ex-aliados, venceu, conseguiu a abolição da escravidão no Haiti e, entre idas e vindas, ganhou homens, força militar e popularidade política suficiente para declarar a constituição haitiana e se tornar governante.

Gravura mostrando a assinatura do acordo entre o britânico Thomas Maitland e Toussaint Louverture (à direita) em 31 de agosto de 1798. (Foto The Holbarn Archive. Leemage)

A habilidade de L’Overture foi justamente ter jogo de cintura entre os conflitos das potências coloniais europeias no Caribe até ganhar musculatura e se livrar de todas elas para fazer prevalecer o interesse dos negros haitianos. A ver se Ibrahim Traoré saberá trair quem se diz amigo mas depois se torne inimigo da liberdade africana, como ele parece estar lutando para fazer valer.

O que você acha que pode acontecer quando os países africanos não quiserem, mais, estar aliado à Rússia?

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Dessalín Òkòtó
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Written by Dessalín Òkòtó

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.

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