Introdução de Cheikh Anta Diop à primeira edição britânica de “A Unidade Cultural da África Negra”, de 1989. — Tradução e Comentário.

“A Unidade Cultural da África Negra” é o segundo livro de Cheikh Anta Diop. Nela, o autor senegalês lança a teoria dos dois berços civilizatórios para caracterizar os antagonismos entre os projetos culturais europeu e africano. Apesar do seu lançamento na França ter sido realizado em 1959, pela editora Presence Africaine, apenas em 1989 que o trabalho ganhou uma tradução britânica, pela editora Karnak House.

Dessalín Òkòtó
7 min readJan 10, 2024

Na tradução abaixo você encontrará:

  • Introdução do Autor;
  • Comentários ao texto.
Edição britância, pela editora Karnak House

Introdução do Autor

Tentei trazer a profunda unidade cultural ainda viva sob a aparência enganosa de heterogeneidade cultural. [1]

Seria indesculpável para alguém levado pela chance de experimentar profundamente o cotidiano da localidade não fornecer o conhecimento da realidade sociológica africana.

Na medida que os fatos sociológicos são, de início, baseados em uma certa motivação ao invés de existirem livremente por elas mesmas, basta compreender o fio condutor para que se livre do labirinto real. [2]

Desse ponto de vista, esse trabalho representa um esforço de racionalização. [3]

É claro que um pesquisador africano está em posição mais privilegiada do que outros e, consequentemente, não existe qualquer mérito de desenterrar as leis sociológicas que parecem ser as fundações da realidade social nas quais ele vive.

Além disso, se muitos estudiosos não tivessem nos precedido, talvez não tivéssemos alcançado hoje nenhum dos nossos resultados.

Nós devemos, portanto, expressar todo o nosso agradecimento a esses estudiosos dos quais os trabalhos nós fizemos uso. [4]

Devo lembrar aqui a memória do meu professor, Marcel Griaule, que até dias antes da sua morte nunca deixou de dar uma atenção especial ao meu trabalho. Igualmente, estou em dívida com M. Gaston Bachelard. Ao professor André Aynard e Leroi-Gourhan, de quem fui aluno, eu devo demonstrar minha gratidão.

Voltando ao assunto deste trabalho, devo indicar os fatos que são apreciados para revelar minha abordagem.

Eu me esforcei em iniciar das condições materiais para explicar todas as características culturais comuns aos africanos, da vida familiar à nação, mencionando as superestruturas ideológicas, os sucessos e fracassos e atrasos técnicos.

Fiz uma breve referência às noções de estado, realeza, moralidade, filosofia, religião e arte, e consequentemente sobre literatura e estética.

Em cada um desses variados assuntos me empenhei em mostrar o denominador comum na cultura africana em oposição à cultura ariana do norte. [5]

Se optei pela Europa como a região de antítese, isto se dá porque, além das razões de natureza geográficas, os documentos são mais abundantes atualmente.

Se eu expandisse meu estudo para Índia ou para a China, arriscaria afirmar coisas das quais não estaria completamente convencido pela ausência de documentação.

É de se notar que um trabalho dessa natureza, que é esperado que seja conclusivo logicamente, não poderia evitar a compilação e reunião de evidências para dar suporte à sua tese, ao invés de se referir brevemente a elas de uma maneira mais ou menos improvisada. O leitor teria o direito de ser cético e poderia, ao fim deste livro, ter um sentimento de dúvida assim como a impressão que ele acabou de ler uma ficção. [6]

Isto nos obrigou a referir os documentos em questão sempre que consideramos necessário.

Obviamente, eu não fui um escravo do conformismo intelectual. [7] Se não tivesse citado autores como Lenormant, que hoje em dia parece ser antiquado, eu seria incapaz de revelar a estratificação das castas das sociedades babilônica, indiana ou sabina.

Que este trabalho contribua para o fortalecimento dos sentimentos de boa vontade que sempre uniram os africanos de uma ponta à outra do continente e mostrem assim a nossa inerente unidade cultural. [8]

Comentários ao Texto

[1] Como o próprio título já indica, a tese central de Cheikh Anta Diop é demonstrar que, apesar da diversidade de manifestação cultural, a África Negra está assentada nos mesmos princípios culturais e civilizatórios. Ao longo de todo o livro, Diop apresenta alguns desses princípios, sendo os do matriarcado e do comunitarismo os mais proeminentes entre os vários outros que ele elenca na obra.

[2] Desde os seus primeiros escritos, Diop tem uma ironia ácida com relação aos intelectuais ocidentais e aqui a gente vê uma demonstração de leve. No livro “As Origens Africana da Civilização”, um texto de maturidade, ele não poupa ironias aos seus detratores. Mas o principal deste parágrafo consiste na indicação do interesse político por trás da pesquisa sociológica. Com isso, Diop faz uma distinção clara sobre a pesquisa sociológica que parte da mão europeia e da que parte das suas mãos.

[3] Concluindo o argumento do parágrafo anterior, Diop indica a racionalização do estudo e debate em torno da cultura africana. E, daqui, podemos compreender algumas coisas se baseando na vida intelectual de Diop. Quando ele chega na Sorbonne, em Paris, pelo ano de 1944, a tese mais popular entre os estudiosos europeus tratava da África com todos aqueles estereótipos racistas que já conhecemos: atraso, selvagens, endemoniados, sensuais, incultos, etc. Ainda havia aqueles poucos, entre pesquisadores e sacerdotes, que até reconheciam no continente africano traços de civilização, mas sem indicar grandes avanços culturais. As teses mais bem aceitas sobre a origem da humanidade era O Homem de Pittdown e que Kemet (Egito Antigo) não era uma civilização africana, mas semítica (asiática que nem os mesopotâmicos). A racionalização do debate consiste em, de um lado, derrubar essas teses e, principalmente, demonstrar que a África não só contém um projeto civilizatório próprio, como ele se caracteriza por ser contrário ao Europeu. Ao fim do livro, quando discute as teses sobre Nietzsche, Diop nos indica, inclusive, a superioridade do projeto civilizatório da África Negra. O que abrirá margem para o acusarem de supremacismo negro.

[4] Diante do contexto que vinha antes, não parece equivocado compreender um tom ambíguo de Diop aqui. Por um lado, ele de fato agradece aos autores que o precederam. Mas, por outro, não o faz por corroborar suas teses, pois rebaterá quase todas elas para fazer valer a dele próprio.

[5] Como antecipei em [1], Diop fará uma afirmação da unidade cultural africana atacando duas frentes: a negação tanto dos estereótipos ocidentais quanto dos traços civilizatórios arianos, bem como a afirmação da civilização africana por valores próprios. E esta é a grande inovação de seu trabalho em meio ao cenário do que se havia produzido até então!

[6] Sabendo que mitologias servem aos interesses filosóficos, mas não ao interesse científico, Diop reafirma sua envergadura intelectual ao indicar que sabe transitar pelas duas, conseguindo sustentar a mesma tese se utilizando das ferramentas de cada uma delas. Por isso a ênfase em destacar as evidências materiais para sustentar suas teses, ao invés de fazer por meios de especulações e hipóteses. Ao fazer isso, Diop fecha a possibilidade de refutarem seu trabalho pela mera negação dos pressupostos e obriga a qualquer um que queira discutir a se ater às evidências materiais e concretas.

[7] Por “conformismo intelectual”, Diop está se referindo aquela sanha academicista de modismos e supostas superações de estudos ou autores que é típico desse meio. Menos interessado nos “últimos gritos da teoria”, ele está mais interessado em se utilizar do que lhe oferece mais insumos para ampliar o debate. O que demonstra o espírito indomável do intelecto de Diop, apesar de fazer sua trajetória no sistema educacional ocidental.

[8] Uma das falsificações sobre a cultura africana é a de que não somos um povo unido. Qualquer um que estude a história do continente africano sabe que a paz foi reinante, a guerra uma exceção. Além disso, o período em que houve conflitos e disputas no continente foi em momentos de invasões. Fosse dos hyksos, Líbios e Persas no Vale do Nilo; fosse dos árabes no norte da África; fosse dos europeus cristãos na modernidade. Quando éramos completamente donos de nossa terra, nossas guerras eram regidas por regras que as tornava menos sangrentas, mais breves e imediatamente inúteis pois não faltavam recursos diplomáticos e comerciais para substitui-las. E é a este histórico que Diop se refere, pois este é um assunto que ele volta ao longo da Unidade Cultural, assim como em outras obras.

Gostou dessa tradução comentada? Ela faz parte do material do projeto Rekhet: Ciclo de Estudos em Filosofia Africana, que estou realizando ao longo desse ano. O tema desse primeiro ciclo é Críticas Negras à Humanidade Branca, onde estudaremos textos clássicos do pensamento africano acerca da civilização ocidental europeia. Em janeiro de 2024 estudaremos “A Unidade Cultural da África Negra”, de Cheikh Anta Diop. Se interessou? Então se liga nos detalhes!

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1º SEMESTRE: CRÍTICAS NEGRAS À HUMANIDADE BRANCA
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Dessalín Òkòtó

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.