Os Instrumentos dos Orixás para a comunidade

Dessalín Òkòtó
5 min readMay 3, 2019

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Cada um dos Orixás tem o seu axé. Cada axé de cada Orixá se materializa em um instrumento ou objeto de realização desse Axé. Das armas e instrumentos de caça e agricultura de Ogum à lama de Nanã, da magia de Exu às ervas de Ossain, todos os Orixás têm um itan onde um pouco do seu axé ou dos seus instrumentos é compartilhado com a comunidade dos orixás.

Nanã cede um pouco da sua lama para cada Orixá poder levar a matéria-prima do seu filho para Oxalá nos criar. Ogum desenvolve a tecnologia e distribui um instrumento de ferro para cada Orixá, segundo sua função no universo. Xangô tenta tirar o monopólio das ervas de Ossain, mas não consegue. Mesmo assim, Ossain dá uma erva para cada Orixá enquanto continua sendo o senhor das folhas. Exu é aquele que está junto a todos os Orixás, mediando as relações entre eles e a humanidade. Exu também é aquele que dispõe de magia para fazer o desfeito e desfazer o feito. Já Orunmilá serve a todos com a sua capacidade de ler os desígnios do mundo pelo tabuleiro de Ifá. O ciclo de subida ao Orun e descida ao Ayiê de Oxumarê faz com que ele leve ao alto o que está no baixo e leve ao baixo o que está no alto, mantendo a circulação de recursos entre o órum e o ayiê. Oxum se mira no espelho para refletir beleza e alegria à sua comunidade. Iansã rouba o poder do fogo de Xangô, recebe o poder dos eguns de Omolu e pelo fole de Ogum, aprende a caçar com Oxóssi e a magia com Exu. E assim adiante.
Todos os Orixás têm um pouco do seu axé compartilhado com os outros Orixás.

Ao compartilharem os seus axés uns com os outros, o que os Orixás estão nos ensinando é que o nosso poder deve servir à nossa comunidade. O poder não se realiza no quanto cada um têm, mas no quanto ela serve à comunidade. De que adianta alguém forte e bom de briga como Ogum — pensa aí naquele negão marombado, por exemplo! — se ele é incapaz de promover a defesa (guerra) ou a construção do conforto (tecnologia) para a sua comunidade? De que adianta alguém sábio como Orunmilá, se sua sabedoria não orienta as pessoas a seguirem os melhores caminhos munidos das coisas necessárias para trilhá-lo bem? De que adiantaria Oxóssi ser capaz de caçar quantos animais e Logunedé pescar quantos cardumes quiser, se isto não servirá para alimentar a sua comunidade adequadamente? De que adianta Ossain ter o conhecimento medicinal de todas as ervas da mata se ele não cura ninguém? De que adianta Exu conhecer todos os caminhos e descaminhos do mundo, se isso não vem acompanhado da capacidade de fazer o desfeito e desfazer o que tá feito?
De que adianta nós termos um poder, se ele serve unicamente para o nosso bem, e não ao bem da nossa comunidade?

Quando Ogum distribui instrumentos de ferro e Ossain distribui as ervas para todos os outros Orixás, eles não deixam de ser os detentores do axé desse recurso. Mas eles dão um mínimo aos outros para que todos gozem dos benefícios desse recurso. E isso é servir à comunidade e se propor a crescer a partir, através e junto dela. Da mesma maneira, ao compreender a função que cada um desempenha no funcionamento da comunidade como um todo. A coletividade vai se organizar para permitir que cada um desenvolva ao máximo os seus poderes e gere o máximo de recursos para todo mundo.

Isso fica mais fácil de visualizar, por exemplo, quando os negros conseguem escapar ao genocídio físico e ascendem socialmente. A comunidade negra não tem nada a ganhar quando um negro ou uma negra ascende economicamente e aquele seu ganho financeiro não é distribuído para a comunidade. Isto significa dar dinheiro pros pretos pobres? Claro que não! Mas que os meios de geração e acúmulo de riqueza seja compartilhado com a comunidade para que todos, cada um com o que lhe cabe, construa e se beneficie daquela riqueza construída. Um bom exemplo disso são os atletas que, via de regra, voltam à favela, subúrbio ou zona rural de onde saíram para construir um centro de formação e treinamento que dê condições plenas para que as crianças e jovens daquele lugar desenvolvam ao máximo suas habilidades esportivas. Outro exemplo são aqueles que ascendem pelos estudos e se tornam estudiosos ou intelectuais e constroem centros de educação, formação e pesquisa nas comunidades de onde vieram para que crianças e jovens tenham alternativas intelectuais para suas vidas. Mas esse exemplo vem “de baixo” também, quando uma mãe e um pai se sacrificam em dois empregos ou em um trabalho degradante pra criar seus filhos, ou os filhos saem para vender bala no sinal e levar algum dinheiro para casa. A comunidade está restrita ao lar, aqui, mas nem por isso o senso africano de sacrificar um pouco ou muito de si para o bem da comunidade não deixa de estar em jogo.

E desse jogo de troca-troca dos Orixás, de sacrificar um pouco do próprio axé para servir à comunidade, podemos retirar o sentido de ubuntu que está tão em voga entre a negada. Pois a frase que dá o significado de ubuntu: “umuntu ngumuntu ngabantu” que vem do Zulu e significa “uma pessoa é uma pessoa através de outra pessoa” e que reduzimos em “eu sou porque nós somos” não tem nada a ver com uma comunidade cirandeira onde ninguém larga a mão de ninguém. Mas uma comunidade diversa e plural onde conflitos e conciliações se darão e, tanto num caso como no outro, ambas contribuirão ao seu modo para o crescimento e fortalecimento da comunidade. Seja em um contexto de aliança ou de conflito, os Orixás contribuem para a construção e o desenvolvimento do mundo.

Além disso, ao distribuir seu axé entre os outros Orixás, aprendemos que todos estão em um assim como um está em todos. Não por acaso, veremos Oxaguiã e Oxum se comportando como Exu; veremos Ogum e Orunmilá se comportarem como Xangô, veremos Omolu, Obá e Iansã se comportarem como Ogum; e assim adiante. Pois, quando um orixá dispõe de um pouco de todos os orixás, ele pode realizar uma função de outro Orixá e, com isso, permitir que o que precisa fazer seja feito. É também para que o universo se mantenha funcionando seguindo as leis que regem o mundo que cada Orixá dispõe do axé de todos os outros e, com isso, trazer pra si a responsabilidade de realizar as coisas na ausência do que seria “o mais apropriado para a função”.

Cada Orixá tem seu axé no rolê. E cada axé obedece a uma função na ordem do mundo. E cada axé se plenifica à medida que serve à comunidade e, com isso, contribui para o seu desenvolvimento. Por outro lado, quando toda a comunidade dispõe um pouco do axé de cada um, todos se beneficiam e podem, inclusive, substituir a “fonte” daquele axé para realizar algo, se for necessário. Uma comunidade é forte por todos estarem contidos em um e um está contido em todos, assim como todas as informações básicas a um organismo estar contido em todas as células do corpo, mesmo que cada célula, tecido, órgão e sistema realize uma função diferente para manter o organismo vivo.

Axé.

Originalmente publicado na página Orixás&Pretagogias.

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Dessalín Òkòtó

Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.